segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Filé Stroganov

    "Neste popularíssimo departamento da gastronomia mundial, o equívoco se inicia pelo termo, que o planeta, tosca e afrancesadamente, grafa como Strogonoff e que a imprensa pátria, de maneira inculta e depreciativa, já apelidou de 'estrogonofe', vulgarizando uma marca de família.
Eu admito que a alquimia, dilapidada pelo tempo e por um vasto batalhão de inconsequentes, se tenha diluído ao limite das festinhas de aniversário e de formatura. A receita original, porém, merece todo o meu respeito, e também, às vezes, a minha dedicadíssima paixão. Num repasto numeroso e coletivo, ela permanece farta e insubstituível.
    As referências mais precisas são escassas. A expressão viria de um verbo russo, strogat, que significa 'cortar em pedacinhos'. Talvez. Já no séculos 16 e 17 os soldados defensores da Carélia, Rússia, nas fronteiras da Finlândia, carregavam a sua carne em nacos e em barris enormes, debaixo de uma mistura preservante de sal grosso e aguardente, a mamãe da vodca de hoje. Na ocasião da fome, bastava cozinhar a coisa com cebolas, e em gordura forte, além de mesclá-la ao creme azedo da mesma bagagem. Segundo Larousse, um cozinheiro de Pedro, o Grande (1672-1725), de extração afrancesada, indicado ao czar por um nobre general, principiou a refinar a alquimia, através de componentes ocidentais. De novo, talvez. O general, contudo, ostentava um nome de batismo crucial - era da família Stroganov, núcleo de mercadores muito ricos, ambiciosos, localizados logo abaixo de Novgorod, entre São Petersburgo/Leningrado e a Letônia, gente cujas linhas de comunicação atravessavam a Europa inteira e iam se debruçar nos Países Baixos, onde hoje se situam a Holanda e a Bélgica.
    Impossível apontar de que maneira o tal cuca, se existiu, mais e mais aprimorou a iguaria. A assinatura, no entanto, sobreviveu. Fontes seríssimas indicam que, mesmo em Moscou, a aristocracia sealimentava de um prato intitulado Stroganov nos idos de 1780. Enfim, no final de 1800, um parisiense de nome Thierry Costet, consta que empregado pelos nobres de Novgorod como o executivo dos seus fogões, introduziu na formuleta os requintes ainda faltantes à sua sobranceria internacional.
    Da sua cidade, Costet levou os cogumelos, os chamados champignons branquinhos eternamente perfumados. No seu trajeto, pescou a mostarda dos germanos e a páprica dos magiares, além dos picles pungentes de pepino que os judeus da Europa Oriental curtiam em vinagre, a fim de se eliminarem as impurezas que oTalmude condena na comida não-kasher.
    A combinação se arredondou de volta à França, Paris, depois da insurreição comunista de 1917, graças ao exílio de uma multidão de aristocratas afugentados pelo bolchevismo. das variáveis todas, publico aquela que eu mais testei, e que mais aprecio, um casamento de múltiplas informações. Termino, de todo o modo, sucumbindo à realidade. Além de Stroganov, aceito que valha o termo Strogonov, conforme se constata no volume 11 de Encyklopejia Pwszechna S. Orgelbranda e confomre assegura um estudioso das suas raízes, o professor Olgierd O. A. Ligeza-Stamirowski, quase sobrinho de um certo Aleksandr Stroganov, coronel da cavalaria do czar e membro do conselho de administração do reino da Polônia, cerca de cem anos atrás.
    O coronel, por um triz não se casou com uma tia do professor. Acabou optando por uma princesa, Aniela Wankowicz. Não fosse esse acidente matrimonial, enfim, eu possivelmente disporia de referências ainda mais fundas."

Silvio Lancelotti, O Livro da Cozinha Clássica - A História das Receitas Mais Famosas da História, L&PM POCKET, 2003, pág. 185-8.


Esse texto do Silvio Lancelotti diz tudo o que penso sobre o que fizeram com o chamado "estrogonofe". Qualquer evento como um casamento ou aniversário, lá está ele, totalmente difamado. Quem nunca comeu um Stroganov tradicional não sabe na verdade o que está perdendo, e muito, ainda mais diante de toda essa carregação que desfila por aí. Tudo bem eu concordo que não é sempre que temos tempo, disposição e até mesmo aptidão para executar receitas que demandam trabalho, desde a preparação de caldos até os detalhes finais de sua execução. Por isso postarei aqui a receita original e a minha versão mais acessível, mas não confundam, longe de ser o que chamam por aí de "estrogonofe".

Filé Stroganov (por Silvio Lancelotti)

"200g de filé mignon cortados em lascas do tamanho dos dedinhos de uma criança
Sal
Pimenta do reino
Páprica picante
Farinha de trigo
Manteiga
2 colheres de mesa de conhaque
Molho inglês, do tipo Worcestershire
Mostarda forte
3/4 xícara de chá de polpa peneirada de tomates
3/4 xícara de chá de molho Rôti
1/2 xícara de chá de cogumelos frescos
1/2 xícara de pepinos em conserva, bem batidinhos
2 colheres das de sopa de creme de leite azedo

Tempero a carne com o sal, a pimenta do reino e a páprica picante. Pulverizo com a farinha de trigo. Misturo muito bem. Aqueço um pouco de manteiga. Refogo a cebola, levemente. Douro a carne. Flambo com o conhaque. Despejo, a gosto o Worcestershire e a mostarda. Mexo e remexo. Incorporo a polpa de tomates e o Rôti. Mexo e remexo. Levo à fervura. Rebaixo o calor. Agrego os cogumelos e os pepinos. Mantenho suavemente, por dois minutos. No derradeiro instante, despejo o creme azedo e acerto, se necessário, o ponto do sal, da pimenta do reino e da páprica.
Quem desejar um Stroganov redicalmente mais autêntico deve temperar a sua carne e deixá-la por algumas horas numa marinada de vodka. O conhaque,entretanto, arredonda o sabor da alquimia. Quem não souber cometer, corretamente, um creme azedo, quem não ousar expor o laticínio à acidez, num desvão da cozinha, de uma noite até 24 horas, apenas falseie o seu paladar final com algumas gotas de suco de limão. Advirto, porém, que o suco de limão, contendo vitamina C, é um óxido-redutor - ou, em outras palavras, endurece aquilo que toca. No caso a carne não se mostrará tão macia.

Molho Rôti: Pulverizo cerca de 2kg de pedaços de carne de boi, alguns com os seus ossos, preferivelmente canela e costela, com bastante farinha de trigo. Levo ao forno até que a farinha se escureça bem. Num calderão, derreto um pouco de manteiga. Nela, bronzeio totalmente as carnes previamente queimadas. Agrego 1 cebola grande, cortada em quatros, 1 cenoura em rodelas e algumas folhas de salsão. Cubro com água. Levo à fervura. Rebaixo o calor. Mantenho, no mínimo, por 24 horas, escumando as gorduras que subirem à superfície. Peneiro. Volto a cozinhar em chama suave, até obter a redução necessária, aproximadamente 1 litro."

Filé Stroganov (minha versão)

Executo da mesma forma como descrito acima, porém tenhos algumas alternativas:
- utilizo champignons em conserva ou cogumelos paris ferscos congelados, achados em qualquer supermercado e sempre à disposição no meu freezer.
- para substituir o trabalhoso molho rôti, a dica mais valioso,  que aprendi com meu tio Venilton, molho madeira de boa qualidade, também encontrado em qualquer supermercado.
- e para o creme azedo: 200ml de creme de leite sem soro, suco de 1/4 de limão e uma pitada de sal. Misturo tudo com um fouet e deixo descansar algumas horas em local quente (perto do forno ou da tv).


 Foto: Bruna Tadini




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